terça-feira, 29 de novembro de 2011

Pra quem já foi

Essa é uma carta pra ninguém. Poderia até ser, mas se fosse pra quem que deveria ser, essa carta simplesmente não precisaria existir. Eu nem precisaria ter começado a escrevê-la porque ela nunca teria se passado pela minha cabeça. E eu preferia que ela nunca tivesse sido pensada por mim. Gostaria que ela não existisse porque você ainda estaria aqui.

Assisti a uma peça outro dia. Lembro que essa história toda de teatro sempre foi um dos meus maiores sonhos, mas eu tinha escondido ele lá no fundo. Daí você um dia tirou esse sonho da gaveta e disse “se você quer ser uma atriz seja uma atriz”. Foi nesse mesmo dia que eu acordei pra vida e tudo aquilo que me fazia medo começou a desaparecer aos poucos. Você me salvou. E eu não consegui fazer o mesmo por você. Não que seja minha culpa, mas essa sensação de inconformismo e de impotência que me domina dá vontade de chorar. Mas não é só por isso. É mais porque eu sinto saudade. Muita. Muita saudade.

E o que me mata é não saber onde você está agora. Não saber se você está bem. Nem sei se existe céu. Se existir tomara que você esteja lá agora, junto com seus familiares e amigos. Não queria que você estivesse naquele paraíso chato que eu vi no filme do Chico Xavier. Não quero que você seja um espírito que ainda está vagando por um mundo que não te pertence mais. Nem pensei no inferno. Nem pensei porque acho essa ideia absurda. Quem julga se alguém deve ir pro inferno ou pro céu? Deus? E quem é Deus? Como ele sabe que as ações de alguém são boas ou ruins? Quem decidiu o que é bom ou ruim? Deus ou os homens? E se você não estiver em lugar nenhum? E se a morte for o fim do corpo junto com a alma? Não gosto de pensar nada disso. Nessas horas, não ter uma religião definida me mata. Queria ser daquelas pessoas que têm certeza de pra onde vão quando morrem. Mas ao mesmo tempo não, porque eu estaria me enganando e eu odeio a ideia de fechar os olhos pra qualquer coisa. O bom é que eu acredito em alguma coisa. Acredito em uma força superior, acredito na força da natureza, acredito em Deus, mas o meu Deus não tem nada a ver com perfeição ou a resposta de tudo. E eu rezo pedindo pra que você fique bem. Espero que você seja algo de luz. Porque você era um ser humano de luz. Muita luz. Você irradiava. E por isso quando eu te vi deitado naquele caixão, tive certeza de que não era você. Não tinha luz, não tinha brilho. Não tinha nada, nem a sua aparência física. Não era você. Eu estava ali no enterro de outra pessoa e sabia que você apareceria lá a qualquer momento pigarreando, como você sempre fazia, tocando nas minhas costas e falando “é, é a vida né?” e depois daria o seu sorriso de carioca esperto que você sempre dava.

Mas voltando à história da peça... (escrever é quase a mesma coisa que pensar. O pensamento vai indo, indo, indo e daqui a pouco a gente esquece qual é a raiz daquele pensamento porque uma coisa leva a outra). O texto era sensacional e por acaso falava sobre varias coisas que estavam se passando na minha vida naquele momento. E era como se me abrissem ao meio, me virando do avesso. E eu fiquei vulnerável. Eram como se aquelas palavras ditas fossem minhas e elas estivessem soltas no ar, no alcance de qualquer um. Quando o personagem começou a falar sobre o dia que o pai dele morreu, não tive dúvidas: ia chorar. Então prendi o choro. Logo eu que adoro me acabar em lágrimas pra expulsar todo o sentimento. Logo eu que sou totalmente contra segurar o choro, principalmente se ele vier da sensibilidade artística. Mas eu resolvi prender porque se eu começasse a chorar, talvez não parasse nunca. Talvez eu estragasse a minha noite e não conseguisse terminar de fazer a maquiagem. Eu sabia que eu só pararia no dia seguinte, quando eu acordasse com os olhos inchados.

E o personagem descrevia exatamente o que eu senti quando você morreu. A gente saia nas ruas e estava tudo igual. O céu continuava da mesma cor, as pessoas passavam rindo da mesma forma, os pássaros não pararam de cantar. Estava tudo igual. E a gente achava que quando as pessoas importantes morriam o mundo parava. Ou a gente pensava que elas nunca iam morrer, porque temos essa mania estúpida de eternizar tudo, mesmo sabendo que nada é eterno. E estava tudo igual, fora o oco que se encontrava no meu peito. E eu tentava gritar para que ele se preenchesse de alguma forma. Mas nada. Nada adiantava. É um vazio que parece queimar, mas ao mesmo tempo é gelado. Sabe aquela bola que você sente descendo no seu estomago quando está preocupado? É essa sensação só que a bola para na boca do estomago e parece que congela. É a confirmação desse sentimento de preocupação. Parece que enquanto ela congela, faz esfriar o seu corpo todo, querendo parar o seu coração também. E você tem vontade de que isso aconteça. Você tem vontade de morrer também. E se eu não tivesse alguém pra me segurar na hora que essa bola se congelou, talvez eu tivesse caído no chão, implorando pra que ele me sugasse. Eu ia ficar lá chorando por dias, sem entender nada da vida, porque quando essas coisas acontecem concluímos que não sabemos nada de nada. E dá vontade de ficar chorando, deitado ali no chão gelado. Mas a gente precisa de pessoas que nos segurem e façam com que a gente ande. É preciso que nos mostrem que a vida continua. É preciso ir andando e chorando, mas andando. Uma hora o choro tem que parar. Ninguém vive pra sempre. Ninguém sofre pra sempre. E um abraço é tudo que diminui um pouco essa dor, porque parece que preenche o buraco que fica. E eu fiquei com muito medo de olhar para baixo e ver que havia um buraco na minha barriga. Sem metáforas, eu realmente achava que tinha.

E a gente tem que passar por isso. Todo mundo passa. E eu que sempre achei que sabia lidar bem com as coisas da vida, que tenho uma cabeça aberta, que adoro me relacionar com as pessoas, percebi que não sei nada de nada. Que não sei lidar com essa situação. Que eu não aceitei nada disso. E vida continua, claro. Mas são nesses momentos que vemos que somos nada. Somos um grão de areia no meio da praia. E são nessas horas que vemos que as coisas materiais não têm nada a ver com a vida da gente. São só acessórios. A vida vale mais que isso. A vida vale mais do que qualquer coisa. E tem gente querendo passar a vida em branco, com muitos acessórios e pouco conhecimento, pouca emoção, pouco amor. Agora eu entendo quem são os pobres de verdade. Pobre de dentro pra fora. Porque tudo que nasce vai de dentro pra fora e tudo que morre vai da vida pra onde eu não sei.

E o mais estranho é que ninguém admite que você pare para pensar. O tempo que você tem para fazer isso é durante o enterro e pronto. Depois você já tem que voltar ao trabalho, já tem mil coisas pra entregar e não tem tempo pra pensar no que significa isso. Não dá tempo de assimilar tudo. Fora documentos pra entregar, para achar e contas a pagar. Você implora para que o mundo te dê um instante para dar o ultimo soluço. Pede que a terra pare de girar pra você chorar durante uma hora sem parar, sem ser durante a madrugada, quando você terá que acordar daqui a pouco. Você só quer um instante para pensar o que é realmente essa história de morte, pra aprender a lidar com essa dor que parece infinita.

Cheguei em casa e resolvi assisti um dos meus filmes preferidos, que foi o que mais que reconfortou até agora. O filme é “Big Fish”. Se todo mundo vê a vida como quer, e porque não ver a morte como a gente quer também? Porque não criar uma história para a morte? Quando a gente acredita nas nossas historias, elas se tornam realidade. E o cara do filme se transformou no que ele sempre quis ser, um peixe grande no rio. E fora toda essa coisa de religião, acho que a gente deveria virar tudo que a gente sempre quis ser quando morremos. Para realmente descansarmos em paz. E isso sim é o que mais faz sentido. Por isso eu criei uma história para tentar explicar a sua partida. E então você virou “a real big fish”, voltando pra onde você pertence. Só que na historia que eu criei você não virou um peixe. Você só se transformou naquilo que eu sempre achei que você fosse. Alguém que me protege, como você sempre fez, alguém que me segura sempre que eu caio, alguém que transforma meus sonhos em realidade. Que era meu pai, meu avô, meu tudo. Você virou meu anjo da guarda.

"A man tells his stories so many times that he becomes the stories. They live on after him. And in that way, he becomes immortal."

Do filme Big Fish.

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