Escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém. A minha própria vida, provavelmente. O ato de
escrever é sempre um desespero, um afogamento e ao mesmo tempo um respiro.
Preciso me agarrar nas palavras como se elas fossem correntes pesadas segurando
meus pés no chão. Preciso escrever para provar para mim mesma que eu existo.
Escrever é a única coisa que me dá certeza da minha existência banal.
Eu sou real. Eu sempre fui e de repente não era mais. É
sempre assim... Escrever é muito perigoso, a gente mexe com o oculto, com
aquilo que não é visto no mundo. É que o mundo não está à tona. Está oculto em
suas raízes submersas em profundidades do mar. É por isso que toda minha
palavra tem um coração que pulsa e circula sangue.
Dia 1
Fico aqui pensando enquanto tomo um chá de qualquer coisa na
janela... Será que não são todas as pessoas que piram, em claro, durante a
madrugada, porque a madrugada é um lugar silencioso, onde a maioria das pessoas
está vivendo em um mundo inventado pela própria cabeça delas? É que quando
estamos acordados justo na hora que deveríamos estar no mundo dos sonhos, tudo
fica meio desfocado. São nessas horas que eu penso que existir simplesmente é um fenômeno que transforma qualquer pessoa em doida.
Fico repetindo pra mim mesma, enquanto olho pra fora e escuto
pouquíssimos barulhos das pessoas que estão acordadas na mesma hora que eu:
Entre todos os caminhos, não posso me perder de vista. Não posso me perder de
vista. Não posso me perder de vista. Caio no sono.
Dia 2
Eu... eu fico imaginando se os personagens das histórias tem
ideia de que eles são apenas personagens. E será que eu mesma não sou um
personagem que não sabe que é personagem? Será que não deu tempo de me
concluírem? Vou ficar presa pra sempre nessas histórias onde os personagens não
se definem?
Talvez eu seja um personagem que eu mesma inventei, então.
Ele precisa ser lapidado por mim. Tenho que ter paciência comigo mesma, senão
me perco dentro de mim. Vivo me perdendo de vista. Preciso ter paciência porque
sou vários caminhos; inclusive o fatal beco sem saída.
Pode ser que eu também seja o vazio. O avesso. Talvez eu
seja o personagem de mim mesmo. Porque, quanto a mim, sinto que de vez em
quando que sou o personagem de alguém. É incomodo ser dois: eu para mim e eu
para os outros.
Eu tenho medo de ser só uma invenção de própria autoria.
Texto de Marcela Picanço e Clarice Lispector (sempre quis falar isso). Fiz uma parceria do além com a Clarice Lispector e me dei o direito de pegar alguns trechos do livro dela "Um Sopro de Vida" e misturar com uma história que eu criei. Coloquei as frases da Clarice no meio das minhas frases, perdidas no texto. Quem leu o livro (e conhece bem ela), provavelmente conseguirá identificar o que é meu e o que é dela, mas achei que a junção, no final, foi como um rio se encontrando com o mar, se misturando e fazendo aquele fenômeno bonito. ( Ela sendo o mar, é claro, e elevando a qualidade do texto).
É a primeira parte de um curta que será filmado na semana que vem, mas fiquei ansiosa demais para divulgar o trabalho.